Quem cuida de quem precisa abortar? O trabalho invisível das redes de apoio feministas

Onde o aborto é ilegal em quase todos os casos e acessado legalmente apenas em três situações específicas, a realidade de quem precisa interromper uma gestação é muitas vezes marcada por medo, solidão e vulnerabilidade

No Brasil, onde o aborto é ilegal em quase todos os casos e acessado legalmente apenas em três situações específicas, a realidade de quem precisa interromper uma gestação é muitas vezes marcada por medo, solidão e vulnerabilidade. Mesmo quando o procedimento é legal, o estigma social e os entraves institucionais muitas vezes tornam o acesso à saúde reprodutiva uma experiência violenta. Nesse vácuo de políticas públicas e garantias reais, redes de apoio feministas atuam silenciosamente como guardiãs de vidas, oferecendo cuidado, informação e acolhimento a quem está em situação de aborto, seja legal ou não. Mas quem cuida de quem precisa abortar? E quem cuida de quem cuida?

No nosso país o aborto é permitido em três hipóteses: quando há risco de vida para a gestante, em caso de estupro e em casos de anencefalia fetal. Ainda assim, dentro desses limites legais, o acesso ao procedimento é precário. Segundo organizações feministas, há uma escassez de profissionais dispostos a realizar o aborto legal, além de hospitais que se recusam a oferecer o serviço e denúncias de violência institucional, como exposição, julgamentos morais e demora deliberada no atendimento. Para quem não se enquadra nos critérios legais, a situação é ainda mais crítica. Embora não existam dados consolidados, Pesquisa Nacional do Aborto chegou a estimar em cerca de um milhão o número de abortos induzidos por ano no Brasil, a muitos deles sem condições seguras de saúde e dignidade, contribuindo com as mais de 200 mil internações hospitalares anualmente relacionadas ao aborto. A criminalização do aborto, na prática, não impede sua ocorrência, apenas o torna mais perigoso.

Neste cenário, redes de apoio feministas emergem como uma força coletiva que atua à margem do sistema formal de saúde. Essas redes são formadas por ativistas, doulas, psicólogas, enfermeiras, médicas, advogadas, estudantes e voluntárias de diversas áreas, que se articulam para garantir informações confiáveis, orientações seguras, suporte emocional, auxílio financeiro e logístico a quem decide abortar. São elas que ouvem relatos dolorosos, orientam o uso correto de medicamentos como o misoprostol, organizam "vaquinhas" para ajudar nas despesas com transporte e estadia, acompanham essas pessoas em hospitais, denunciam violações e, acima de tudo, oferecem presença e escuta. Tudo isso feito com recursos próprios, sob as pressões da criminalização, sem descanso e de forma quase sempre invisível.

O cuidado como resistência

Mais do que oferecer um serviço solidário, o trabalho dessas redes é um ato político. Em um país que insiste em legislar sobre os corpos de mulheres e pessoas aptas a engravidar, cuidar de quem aborta é um gesto de resistência e coragem. É reivindicar a autonomia como um direito inegociável. É romper com a lógica punitiva que isola, pune e silencia. Ao cuidar, essas redes constroem outra forma de relação, baseada no acolhimento, afeto e empatia –e não em julgamento. Promovem , muitas vezes, a única chance de alguém passar pelo processo com dignidade e segurança. É como se dissessem: "Você não está sozinha", uma frase que pode salvar vidas.

O que raramente se fala, no entanto, é que quem cuida também se desgasta. As ativistas vivem sob constantes tensões de natureza emocional, jurídica, física e psicológica. Estão sujeitas a ameaças, exaustão, processos criminais e falta de recursos. Precisam apoiar, muitas vezes, dezenas de casos simultaneamente, conciliando esse trabalho com suas vidas pessoais e profissionais. Ainda assim, continuam. Porque sabem que sua atuação pode significar a diferença entre a vida e a morte para alguém. Mas a pergunta permanece: quem cuida de quem cuida?

O que o Estado deveria fazer

As redes feministas não deveriam ser a principal linha de cuidado no acesso ao aborto. O Estado brasileiro tem responsabilidade constitucional de garantir saúde, autonomia reprodutiva e acesso à informação. Mas não o faz.

Por isso, é urgente:

  • O fortalecimento do aborto legal com garantia de atendimento humanizado em todo o território nacional;
  • O financiamento de políticas públicas de cuidado, que incluam saúde mental e proteção às pessoas que estão nas pontas das redes de solidariedade;
  • A inclusão de protocolos de formação em direitos sexuais e reprodutivos nas escolas, universidades e unidades de saúde.

Enquanto o Estado falha, são as redes de apoio feministas que sustentam, acolhem, orientam e protegem. É nelas que muitas pessoas encontram um mínimo de dignidade num momento de profunda vulnerabilidade. Tornar visível esse trabalho é reconhecer a potência da coletividade, mas também a urgência de uma mudança estrutural.

Elas não deveriam ser as únicas. Mas, enquanto forem, que sejamos muitas. E que continuamos gritando: ninguém solta a mão de ninguém.

Sobre a Rebeca Mendes

É advogada, ativista feminista e integrante do Projeto Vivas, uma iniciativa que conecta mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar a redes de apoio seguras e acolhedoras no Brasil e em outros países. Atua na defesa da justiça reprodutiva, com foco na produção de conteúdo, formação política e escuta ativa a quem vive situações de aborto. Acredita no poder transformador do cuidado coletivo e da comunicação como ferramenta de libertação.